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por que Leão XIV condenou a usura

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“O fenômeno da usura aponta para a corrupção do coração humano.” Com essa frase taxativa, o Papa Leão XIV abriu seu discurso ao Conselho Nacional Anti-Usura, no dia 18 de outubro, no Palácio Apostólico. A usura, disse o pontífice, “é um pecado grave” que destrói famílias, abala comunidades e “pode colocar povos inteiros de joelhos”. 

Desde as primeiras palavras, o papa deixou claro que não se trata apenas de um problema econômico. “A usura pode trazer crise às famílias, desgastar a mente e o coração a ponto de levar as pessoas a pensar no suicídio como a única saída”, afirmou, chamando atenção para a dimensão desproporcional dessa chaga moderna. 

Leão XIV descreveu o mecanismo sedutor e cruel da usura como um ciclo que começa com a promessa de ajuda e termina em desespero. “Há uma forma de usura que aparentemente parece querer ajudar aqueles em dificuldades financeiras, mas que logo se revela pelo que é: um fardo sufocante”, advertiu. As vítimas, explicou, são “pessoas frágeis”, como viciados em jogo e famílias desesperadas ou endividadas por causa de doenças ou despesas inesperadas. 

“O que primeiro se apresenta como uma mão amiga, na realidade, torna-se, a longo prazo, um tormento”, resumiu o papa, em uma das passagens mais enfáticas de seu discurso. 

Mas, em uma era marcada por câmbio flutuante, moedas digitais e reservas fracionárias ainda é possível falar em usura? 

Antes de Cristo, a usura já era condenada 

Usura é cobrar juros em um contrato de mútuo, ou seja, em um empréstimo de bens fungíveis, como dinheiro. Nesse tipo de contrato, o mutuário recebe a coisa para uso, mas deve restituir outro bem igual em gênero, qualidade e quantidade, garantindo que o empréstimo seja devolvido de forma justa. 

A discussão se é justo cobrar algum tipo de juro remonta a antiguidade, muito antes do cristianismo. No antigo Código de Hamurábi, cerca de 1750 a.C., os babilônios não proibiam o juro, mas o limitavam drasticamente, pois era uma forma de conter abusos que levavam camponeses à miséria.  

Já na Grécia, o debate entre filósofos ganhou tom moral. Platão, em As Leis, recomendava que “ninguém empreste a juros”, temendo que a ganância corroesse a harmonia da cidade. Aristóteles foi ainda mais duro. Em Política, chamou o juro de “contrário à natureza”, pois o dinheiro, feito para a troca, não deveria “gerar dinheiro”. 

Na Roma antiga, o abuso com relação aos juros precisou de lei. A Lex Genucia, de 342 a.C., proibiu completamente a cobrança de juros, refletindo a revolta dos plebeus endividados. Filósofos como Catão e Cícero associaram a usura ao crime, chamando-a de “ganho repugnante” e comparando-a ao homicídio.  

De um modo geral, as consequências da dívida sempre foram severas. Quem não pagava podia ser preso ou escravizado. Por isso, os filósofos sempre olharam para a usura como um ato de injustiça. 

Economia moderna e a usura 

Com o fim do padrão-ouro na década de 1970, desapareceu o princípio básico que por séculos limitava a emissão de moeda, pois não se podia emprestar o que não se tinha. Antes, o valor do dinheiro estava vinculado a um lastro físico (geralmente o ouro), o que impunha limites concretos à criação de crédito e à cobrança de juros.  

Com a desvinculação entre moeda e reservas metálicas, os bancos centrais passaram a emitir moeda fiduciária e a definir as taxas de juros com base em decisões políticas e dinâmicas de mercado, e não mais por restrições materiais.  

A partir daí, o sistema financeiro ingressou em uma nova era, em que o crédito passou a ser criado “do nada”, sustentado apenas pela confiança e pela política monetária. As taxas passaram a refletir risco, inflação e oferta e demanda de crédito, ignorando qualquer controle moral sobre juros.  

Essas transformações, somadas à expansão do crédito e à sofisticação financeira das moedas digitais, por exemplo, tornaram as vantagens dos bancos sobre o resto da população como uma prática normalizada. 

A usura na visão da Escola Austríaca de Economia 

O que antes era majoritariamente considerado injusto, foi reinterpretado pelos economistas da Escola Austríaca.  

Eugen von Böhm-Bawerk via o juro não como exploração, mas como a “diferença natural entre o valor de um bem presente e o valor de um bem futuro”. Em Capital e Juros (1884), ele critica a visão moral da usura, afirmando que ela “confunde a origem natural dos juros com a injustiça pessoal de certos credores”. Para ele, cobrar juros seria legítimo, pois quem empresta renuncia ao uso imediato de um bem e merece compensação.  

No mesmo sentido, Ludwig von Mises reforça essa ideia em Ação Humana (1949), dizendo que “a taxa de juros não é um preço arbitrário, mas uma categoria da própria existência humana”. Assim como para Murray Rothbard, em Homem, Economia e Estado (1962), que defende que “não há nada imoral em cobrar o que o mercado permite, desde que não haja coerção”. Para eles, o termo “usura” é apenas um rótulo para acordos voluntários. 

O vilipêndio moral que a Igreja Católica ainda acusa 

Quanto ao pensamento do Papa Leão XIV, ele remonta a Santo Tomás de Aquino, que se baseia no realismo filosófico herdado de Aristóteles. Segundo essa corrente, a usura nasce da distorção do contrato de mútuo. Nesse tipo de contrato, há transferência total de propriedade do credor para o devedor. Ao emprestar dinheiro, o credor abdica da posse e, com ela, de qualquer responsabilidade sobre o bem. Assim, todo o risco passa a ser do devedor. Por exemplo, se o dinheiro for perdido ou roubado após o empréstimo, a obrigação de devolução permanece integral, a menos que haja acordo específico entre as partes.  

Aquino via nisso uma injustiça estrutural, pois o credor, além de se livrar de custos — como os de guardar e proteger suas moedas, algo comum nas antigas casas de depósito —, ainda exigia retorno financeiro sem ter trabalho nem risco.  

Para o teólogo, lucrar sobre um bem consumível, cuja posse já foi transferida, era moralmente ilícito, pois o dinheiro não gera frutos por si só e seu uso deveria estar a serviço da vida real, não da especulação. Portanto, segundo ele, esse tipo de ganho seria injusto independentemente do valor da compensação, pois equivaleria a vender algo que não existe. 

Por que no caso do aluguel é diferente? 

Para Santo Tomás de Aquino, a diferença entre o mútuo e o comodato era essencial para entender por que a cobrança de juros é injusta no primeiro caso. No comodato — o empréstimo de um bem durável, como uma casa ou um carro —, o bem continua sendo propriedade do credor, que o recebe de volta após o uso. Por isso, é legítimo cobrar pelo desgaste ou pela utilização, o que justifica, por exemplo, o pagamento de um aluguel. 

Já no mútuo, como o empréstimo de dinheiro ou de bens consumíveis (como vinho ou trigo), a propriedade é transferida ao devedor, e o bem é consumido em seu uso. Assim, segundo Aquino, seria absurdo cobrar não só a devolução integral do bem, mas também um valor adicional pelo seu uso, o que equivaleria a cobrar duas vezes por algo que já deixou de existir. 

Elemento do globalismo 

O professor Murilo Resende, doutor em Economia pela EPGE/FGV-RJ, explica que o sistema financeiro mundial opera sobre uma base essencialmente usurária. Ele explica que a estrutura formada por bancos centrais e instituições privadas “cria moeda a partir do nada, com base no endividamento das famílias”, e que esse modelo, consolidado nos últimos 500 anos, sustenta a própria estrutura material do globalismo.  

Para Resende, o poder de criar moeda já seria “magnífico” por si só, mas tornou-se exponencial com a liberação da usura. “A usura permite cobrar um lucro sobre algo que foi criado do nada, extraindo ainda mais recursos da economia por meio desse privilégio”, afirma. Segundo ele, ao aplicar juros compostos sobre esse poder fictício, o sistema financeiro adquire condições de expropriar pessoas em massa durante crises econômicas, por meio de contratos de mútuo baseados em dívidas cuja contrapartida — o dinheiro emprestado — foi originalmente criada sem lastro real. Nas palavras do economista, “no fundo, é o endividamento que sustenta tudo”. 

Existe, entretanto, uma distinção entre juros legítimos e usura. Para Resende, juros podem ser considerados aceitáveis em títulos da dívida pública, onde não há execução pessoal do governante, ou em investimentos corporativos, com risco compartilhado e responsabilidade limitada.  

Para ilustrar a desproporcionalidade da prática no Brasil, a taxa de juros do cartão de crédito rotativo ultrapassou 451,5% ao ano em agosto de 2025, o que significa que após um ano, deve-se pagar mais de cinco vezes o valor do principal para quitar os juros do cartão de crédito. “Isso mostra o quanto a noção de usura foi relativizada”, conclui o economista.  

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