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Como a Venezuela recuperou a esperança

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“Você está fora do ranking para debater comigo. Águia não caça mosca, deputada.” 

Foi o que Hugo Chávez disse a María Corina Machado em cadeia nacional, em janeiro de 2012, quando ela era um dos 65 deputados de oposição na Assembleia Nacional venezuelana, e era convocada a ouvir em silêncio e sem oportunidade de questionar ou refutar, os relatos de um presidente que satisfazia com a generosidade de um glutão sua necessidade visceral de se expressar em voz alta durante horas a fio em todas as rádios e televisões do país. María Corina, como deputada, não podia simplesmente desligar a televisão, como fazíamos muitos venezuelanos. Nem podia pedir a palavra para questionar nada do dito e aplaudido pela maioria chavista no parlamento durante oito horas; mas ela podia arriscar-se a interrompê-lo, levantando a voz da sua cadeira na plateia. “Aceite o debate, presidente!” gritou, levantando-se. Do nada, um microfone apareceu na frente de seu rosto.

Em pouco menos de dois minutos, María Corina fez aquilo que todos os líderes políticos de oposição na história do chavismo/madurismo dariam tudo o que têm para poder fazer: desafiar, ao vivo, de forma direta e aberta, o “colosso” mestre contemporâneo do autoritarismo ambíguo. Desafiar o ditador congênito e carismático que levou a melhor porque morreu cedo, e porque soube se disfarçar de “esquerda” e de santo padroeiro dos pobres, embora 15 anos no poder e mais de US$ 960 bilhões em receitas petrolíferas não tenham sido suficientes para erradicar a pobreza na Venezuela — além da sua própria e a de seus achegados. 

“Como você pode dizer que respeita o setor privado na Venezuela, quando se dedicou a expropriar… que é roubar…?”, interpelou María Corina, em nome de “uma Venezuela decente que não quer avançar para o comunismo”. Chávez mandou-a ganhar as primárias presidenciais da oposição, das quais Machado era candidata, antes de querer debater com ele — como se Chávez tivesse sido do tipo de ditador que debatia. 

“Expropriar é roubar” se tornou o slogan da reta final da campanha de María Corina na primária opositora de fevereiro de 2012, na qual obteve 3,5% dos votos. Mulher —a única de seis candidatos—, liberal e conservadora, divorciada, engenheira, ainda não muito conhecida além da capital, e com uma proposta de governo chamada “Capitalismo Popular” —similar ao “Capitalismo para todos” do recém-eleito presidente da Bolívia, Rodrigo Paz—, não foi o item mais atraente de um menu político que também não era muito variado, mas que colocava uns e outros em posições opostas quanto a como deveria ser enfrentado o oponente em funções que havia passado mais de 10 anos acumulando vantagens institucionais —incluindo acesso ilimitado às cadeias nacionais e fundos públicos para investir na campanha própria e em despesas públicas, além da manipulação das forças armadas, entre outras coisas. Chávez também dominava todos os aspectos logísticos, temporais e materiais de um processo eleitoral que já tinha fama de ser uma ferramenta ao serviço do comandante-presidente-candidato. 

Enquanto líderes mais populares davam por mitigado o risco de fraude eleitoral, sempre que houvesse um fluxo de votos favoráveis à oposição tão abundante que tornasse impossível perpetrar um roubo público, María Corina insistia na necessidade de se organizar desde a sociedade civil para cuidar e defender cada voto depositado, com ou sem esse fluxo. “Se você não ficar de olhos nas condições eleitorais, vai perder”, disse ao vencedor das primárias, Henrique Capriles. Se ofereceu para organizar a logística de proteção do voto na eleição geral contra Chávez, mas, em 2012, as prioridades eram outras. “De democracia, não se vive” era um dos pensamentos dominantes na época. 

Onze anos depois, María Corina passou de 3,5% para 92% de apoio em uma primária presidencial opositora. Doze anos depois, ela elaborou e conduziu o xeque-mate eleitoral de um regime encravado no poder, apropriando-se de suas regras do jogo e colocando-as em prática a favor do desejo dos venezuelanos de expulsar o chavismo/madurismo pelo voto. Treze anos depois, a gestação desse xeque-mate rendeu à “mosca” de Chávez o Prêmio Nobel da Paz. 

A fórmula do impossível 

Atender ao chamado do guerreiro interno dentro de cada venezuelano para sair para votar é algo complicado. São muitas, desde 2004, as eleições simuladas e fabricadas, turvas, roubadas e “não cobradas”; ou até mesmo vencidas e efetivamente “cobradas” — como a maioria parlamentar opositora que foi conquistada em dezembro de 2015, mas que perdemos quase imediatamente quando o regime de Maduro dissolveu na prática o poder legislativo e perseguiu, encarcerou e hostilizou todos os deputados eleitos e seus aliados. 

Com o passar do tempo, nós, venezuelanos, fomos ficando cansados de perder sempre, de perder mesmo ganhando, e foi no momento de maior desgaste e desesperança que María Corina pôde reivindicar a vez de liderar uma nova tentativa de vencer, pelo voto, um regime que vive de repressão e de fábulas de um suposto apoio popular, baseado em picos de popularidade que morreram junto com Chávez, e que não são transferíveis. 

“Mas quem vai sair para votar se todos nós fomos embora?” 

Foi uma pergunta que me fiz e que também fiz a outros migrantes venezuelanos em 2023, de um lugar pessoal um pouco pessimista, quando começou a surgir e a soar “primárias da oposição” como palavra-chave nas nossas telas. Os venezuelanos, dentro e fora, vivemos e convivemos em um país digital de WhatsApp e outras redes, no qual nos chocamos, dialogamos e tentamos construir consensos. A vida na década anterior a 2023 foi de ciclos mortais de hiperinflação, escassez e fome em massa, dolarização não oficial mas onipresente, contrações econômicas, inelegibilidades políticas e exílios, protestos violentamente reprimidos, perseguição política, prisão, tortura e morte para todos e qualquer um, não apenas opositores declarados, fusão do Estado com o crime organizado e o narcotráfico, sanções internacionais ao regime, governos civis paralelos autoproclamados e depois desativados, negociações eternas mediadas por outros países, devastações de uma pandemia, o maior êxodo da história latino-americana, e a consolidação de uma diáspora de mais de 8 milhões de venezuelanos. 

Apesar de tudo, havia pesquisas de opinião confiáveis e as pessoas se atreviam a expressar suas preferências: estavam marcadas eleições presidenciais para 2024 e havia vontade de uma primária opositora. Entre as lideranças que não estavam presas nem exiladas, María Corina liderava com folga em popularidade, mesmo estando inabilitada pelo regime para se candidatar. As pesquisas davam a ela um apoio de 48%, 40 pontos acima do Capriles, que estava em segundo lugar com 8%. 

Na minha cabeça, quem sempre tinha se dedicado com energia a estimular e defender o voto, e a convencer os outros a dar, seguir e participar, ou já tinha ido embora do país em protesto e preservação de uma vida própria, ou estava preso e torturado, ou tinha ficado sem gasolina no tanque para continuar insistindo. Mas eu estava muito enganada. Para 2023, o partido político que María Corina fundou, Vente Venezuela, já tinha alcance nacional e membros em todos os estados. Contra todas as tentativas do regime de impedir, atrasar ou infiltrá-la, houve uma eleição primária opositora em 22 de outubro de 2023, organizada por venezuelanos voluntários. Foi “manual”, com votos de papel depositados em urnas que depois foram contados um a um. Votaram 2.253.825 pessoas dentro e fora da Venezuela, e 2.307.635 delas optaram por María Corina. 

Transferir a popularidade em três meses 

Em uma campanha eleitoral, convencer os eleitores a apoiar um candidato é apenas metade da tarefa. A outra metade é uma travessia vertiginosa e tensa, na qual é preciso garantir que os eleitores saibam exatamente o que fazer no dia da eleição para entregar seu voto legítimo e válido. Na campanha presidencial contra Maduro em 2024, essa travessia consistiu em fazer chegar a todos os eleitores o mesmo recado: para votar por María Corina, era preciso votar por outra pessoa. Ela tinha o apoio e o top of mind, mas nem seu nome nem sua cara estiveram na chapa eleitoral da eleição de 28 de julho, que, ao contrário, mostrava a cara e o nome de Nicolás Maduro 13 vezes. 

Esta é a imagem da chapa eleitoral que os eleitores viram nas telas das urnas ao exercerem seu voto nas eleições presidenciais da Venezuela de 2025. Foto: Conselho Nacional Eleitoral venezuelano (CNE). 

O Conselho Nacional Eleitoral do regime não permitiu que María Corina se candidatasse, então o primeiro desafio de uma disputa que se parecia mais com uma gincana distópica do que com uma campanha eleitoral foi encontrar um substituto a quem transferir e unger sua popularidade entre abril e julho de 2024. Assim, Edmundo González Urrutia, um diplomata aposentado de 74 anos que o regime aceitou como adversário por considerá-lo desconhecido, tornou-se candidato e acabou por se converter no presidente eleito da Venezuela.  

O segundo desafio foi fazê-lo conhecido em cada canto da Venezuela e explicar que, para votar por ele, era preciso encontrar seu rosto no mar de caras de Maduro e de outros candidatos de fachada que apareciam na cédula eleitoral. Sem outdoors nem acesso a meios tradicionais de comunicação de massa, María Corina saiu a percorrer o país com um cartaz com a cara de Edmundo na mão — por terra, rio ou mar, porque as companhias aéreas domésticas têm proibido a venda de passagens para transportá-la, sob pena de fechamento ou multa. 

Maria Corina Machado, no estado venezuelano de Portuguesa, em abril de 2024. Maria Corina Machado, no estado venezuelano de Portuguesa, em abril de 2024. (Foto: Divulgação/Vente Venezuela )

Maria Corina Machado, no estado venezuelano de Portuguesa, em abril de 2024. Foto: Vente Venezuela 

Ninguém sai sem as atas 

Que Edmundo González Urrutia é o presidente eleito da Venezuela, com 67% dos votos, 7.443.584, frente aos 3.385.155 obtidos por Maduro, é uma certeza para os venezuelanos e para o mundo. Todos sabemos. Até mesmo os aliados automáticos do mítico “Socialismo do Século XXI”, como o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, que pediu a Maduro que apresentasse a prova de sua vitória decretada na madrugada de 29 de julho de 2024. O problema é que as únicas provas que o regime de Maduro poderia ter para mostrar não são outras senão as que saíram de suas máquinas de votação, e essas foram coletadas, preservadas, digitalizadas e publicadas por uma legião de voluntários organizados por María Corina em uma operação logística inédita. Essas provas, além disso, dão a vitória a outro. 

Em 28 de julho de 2024, mais de 10 milhões de pessoas saíram para votar, apesar dos obstáculos impostos pelo Conselho Nacional Eleitoral do regime, que, entre outras coisas, limitou o voto no exterior a apenas 69.211 pessoas, enquanto aproximadamente 5 milhões de adultos em idade de votar vivem na diáspora. 

Durante a campanha, cerca de 270.000 voluntários foram treinados para aprender cada detalhe do processo de votação eletrônica com as máquinas do regime e assumir funções de assistência e custódia do voto antes, durante e após a eleição, em cada um dos 15 mil centros de votação do país. Sua missão ao final daquele dia era clara: obter uma cópia da ata com código QR que cada uma das máquinas atribuídas a cada mesa de votação do país —um pouco mais de 30 mil— imprime após a contagem dos votos. Ter uma cópia própria dessa ata é um direito que nem todos os venezuelanos sabíamos que tínhamos, junto com o direito de não ir embora até tê-la em mãos. 

“Esta é uma batalha campal, uma ata de cada vez.” 

Essa foi a mensagem que um amigo, que trabalhou como voluntário em um centro de operações receptor de atas, me enviou pelo WhatsApp. O centro foi ativado no dia da eleição como parte de uma engrenagem discreta e perfeitamente ajustada. Com a ata na mão, um voluntário responsável por cada mesa de votação enviava ao centro de operações o resultado da eleição daquela mesa, acompanhado de uma foto da ata que o respaldava. Assim, foi feito o “boca de urna” em 2024, e foi possível monitorar em tempo real a vitória de Edmundo González, calculada pela soma de votos mesa por mesa, e não por totais centralizados e informados pelo Conselho Nacional Eleitoral do regime. As fotos de cada ata eram, por sua vez, um registro digital, ordenadamente arquivado em servidores eletrônicos, de onde qualquer pessoa no mundo podia baixar a ata de totalização dos votos de qualquer mesa de votação da Venezuela. 

Como as cópias físicas das atas, a prova da nossa vitória, conseguiram se reunir, se preservar e escapar das garras do regime —que não conseguiu encontrá-las nem destruí-las— é um milagre logístico de detalhes desconhecidos. Hoje, nossas atas também tiveram que migrar e agora repousam nos cofres blindados do Banco Nacional do Panamá. 

Negociação dos venezuelanos conosco mesmos 

Para María Corina, todas as negociações que surgiram entre o regime e a oposição ao longo dos anos, mediadas pelo Vaticano, pela UNASUL, pela Espanha e até pela Noruega, sempre foram estratégias de “apaziguamento” e de atraso que apenas beneficiaram e deram oxigénio a um regime criminoso e violento, uma contraparte com quem nada se pode negociar, porque não é confiável. Para ela, a única negociação possível é aquela que conduz à saída do regime do poder, e, nesse âmbito, tem cabido até a possibilidade de salvo-condutos, talvez imunidades, para os responsáveis pela desgraça de uma nação inteira e pela separação das suas famílias. Isto é algo com que nem todos concordamos; nossos dilemas são complexos quanto ao que estamos ou não dispostos a fazer e dar, quanto e a quem, em troca de poder existir livres e sem opressão, dentro e fora da Venezuela. Em troca de eles partirem e nos deixarem viver em paz. 

Mas ir às eleições contra Maduro em 2024 implicou uma negociação conosco mesmos, pois significou aceitá-lo como um ator legítimo, e não como o usurpador funcional que realmente era após roubar a presidência na farsa eleitoral de 2018. Significou aceitar medir forças nas urnas contra um criminoso requisitado pela justiça internacional. 

Tenho a coragem de afirmar que a María Corina de 2005 certamente nunca teria concordado em participar de eleições que não fossem “limpas e livres”. Mas o preço que pagamos por perder por inércia foi alto. O que acontece quando não nos apresentamos é que o chavismo/madurismo ocupa todo o espaço com a intenção de ficar ali para sempre. A lição de que é preciso sair para jogar e lutar em um terreno sujo, com o que temos, muito ou pouco, está no centro do debate sobre uma luta que continua, porque o regime ainda está no poder, perseguindo, matando e prendendo em retaliação à sua própria derrota. 

Até o fim 

“O que nós venezuelanos estamos dispostos a fazer para ter nossos filhos conosco? TUDO. E tudo é TUDO.” María Corina disse isto numa conversa com o meio La Gran Aldea, em março de 2025, desde a clandestinidade, na qual se encontra para se proteger e se defender das retaliações do regime por ter, novamente, feito o que nenhum outro líder político conseguiu fazer antes. Também precisa se defender de queixas e questionamentos que vêm, não do regime, mas de “dentro de casa”; daqueles que reclamam que ainda não conseguiu “cobrar” a eleição, como se não tivesse feito a tarefa por completo. Há até quem recrimine a clandestinidade dela, como se quisesse vê-la se imolar, como se não perdoassem seu instinto de autopreservação. 

É muito o que se exige de uma mulher que fez o que outros não puderam em um país apaixonado pela ideia de que sempre é um homem, um pai, quem resolve tudo. Um caudilho com habilidades “instrumentais”, daquelas que estereotipicamente se associam à masculinidade e que geram rejeição quando exercidas e demonstradas por uma mulher — liderança, decisão, força física e mental, operação de maquinaria e armamento, resistência física, valentia, coragem ou rudeza descarada.   

O Nobel da Paz é um reconhecimento à disposição de María Corina de persistir até atingir o objetivo, de mover peças nos diferentes tabuleiros simultâneos em que ela explica que se joga o conflito venezuelano — como estar “jogando xadrez em vários tabuleiros ao mesmo tempo”. Para os venezuelanos, é uma vitória muito merecida tendo ganhado, porque ganhamos, embora o Nobel não nos restitua automaticamente o país. É uma maneira de mostrar ao mundo que a Venezuela também é capaz de reclamar o que é seu com excelência e civismo, em um momento em que nossa identidade, qualidade e valor são debatidos, questionados e reivindicados em batalhas narrativas globais e confusas sobre o prejuízo ou o benefício da migração em massa. 

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