Cabelos vermelhos, óculos invertido (ou de armação mutcho loka, sei lá!), indumentária diferentona e pose de quem ri na e da cara da sociedade. Foi assim que a cientista social Jacqueline Muniz apareceu na TV. E viralizou. No mau sentido. Porque o que chamou a atenção das pessoas não foram suas teses ora complexas, como a de que “o Estado organiza o crime”, ora francamente estúpidas, como a de que é possível combater fuzis com pedras, e sim seu visual transgressor. Uma lástima.
Assim, o debate sobre a segurança pública, talvez o mais importante que se trava no Brasil de hoje, acabou engolido pela aparência excêntrica de alguém que abriu mão da autoridade para posar de rebelde. E isso justamente numa área que explora as consequências desastrosas e violentas da rebeldia e da transgressão. E eu já nem sei se isso é hipocrisia. Está mais para uma incoerência patológica. Mas se você tiver um nome melhor para isso, estou aceitando sugestões.
Como vovó já dizia
É como a vovó (ou mamãe) já dizia: a aparência importa. E importa muito. Ajeita essa gravata, meu filho! Apara bem essa barba. Penteia essa careca. Pôs uma cueca limpa?Coisa e tal. No caso de Jacqueline Muniz, a coisa só piora. Porque ela é uma acadêmica tentando explicar um fenômeno que mexe com a vida e a morte das pessoas e que, por isso, desperta opiniões apaixonadas. O problema é que, com um visual daqueles, não importa o que a especialista diga; a imagem dela chegará antes de suas doutas palavras.
E aí a dissonância só aumenta. Primeiro porque já há certo receio quanto à palavra de especialistas. Afinal, a gente viu e ouviu todas as bobajadas que foram ditas durante a pandemia. Depois porque o tema segurança pública trata justamente de respeito às normas sociais. Ora, como alguém que se expõe como um marginal (no sentido de “à margem do padrão”) pode querer ensinar ou explicar ou analisar algo sobre segurança pública? Como uma pessoa assim pode querer ser ouvida. Ainda mais numa sociedade que se sente mergulhada no caos e sedenta de ordem.
Lado B
Essa é a crítica óbvia, aquela que você queria que eu fizesse e eu fiz. É o lado A da história. Que, como toda história, tem um lado B. É que, se me lembro bem, e me lembro, as mesmas pessoas que hoje tripudiam das mechas flamejantes de Jacqueline Muniz são as que, no auge do bolsonarismo, criticavam os “estetas”. Isto é, aqueles que viam na “tosquice autêntica” (ou seria “autenticidade tosca”?) do ex-presidente um sinal de que Jair Bolsonaro talvez não estivesse à altura do cargo que ocupava. Uma opinião da qual você pode discordar, mas que é legítima.
Se os estetas estavam ou não certos eu não sei. Não vem ao caso. O fato é que eles foram silenciados, ridicularizados e acusados de ver o mundo pelo prisma superficial daquilo que é aparente e escancarado. Daquilo que causa repulsa em uns e admiração em outros. Por mais bem-intencionados que fossem (e alguns eram), as críticas deles foram descartadas como um sinal de elitismo, artificialidade e superficialidade. Será que eram mesmo?
Bigodinho cafajeste
E não se engane. A direita também tem sua estética. E ela tampouco é inocente. O bigodinho cafajeste, o chapéu de boiadeiro, a tiara de flores, o pão com leite condensado: tudo isso compõe uma mise-en-scène (ó que chique!) de autenticidade, de enfrentamento do sistema. Só que, no fim, o que prevalece é a mesma lógica marqueteira da doutora de cabelo vermelho. Isto é, a da autenticidade calculada, planejada para gerar engajamento à custa da autoridade. Moral e intelectual.
O fato é que, nessa guerra de estilos, o que se perdeu foi a noção da forma. Que não é frescura nem nada. A forma é como a Verdade se apresenta ao mundo. Um padre, um juiz, um professor, todos sabem disso e eu ousaria dizer aqui que os ministros do STF sabem disso como ninguém! Tudo fala. A aparência é a porção visível da autoridade. E, quando a forma se degrada, o conteúdo se perde. Vale para o mundo acadêmico, para a política e até para o jornalismo. (Oi!).
Respeito pelo interlocutor
Não, né? Claro que não. Não estou dizendo que todos devem se encaixar num molde quadradão, careta e bitolado. Nada disso! O que estou dizendo e repetindo é que a aparência importa e importa mais em certos campos de atuação. Porque a forma como nos apresentamos ao mundo também é uma maneira de expressar respeito pelo interlocutor e, sem querer entrar no terreno da psicanálise, por si mesmo.
Alguém que, em nome de uma rebeldia tardia ou de uma autenticidade falsa e marqueteira, sacrifica as ideias (por piores que elas sejam) é alguém que não respeita seu público. Nem a si mesmo. E não adianta vir de dedo em riste, porque certas coisas são imutáveis. Aprendamos, pois, com a vovó: desleixo ou visual agressivo ou linguagem falsamente autêntica, todas essas coisas normalizadas na caótica arena pública em que tentamos nos fazer ouvidos, são erradas. Porque erguem um muro entre mim e você, você e mim.
Aí estão Jacqueline Muniz e suas mechas flamejantes, que não me deixam mentir.

