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Ainda há seres humanos por aí

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Em sua mais recente newsletter, Silly Talks, meu amigo Orlando Tosetto narra as aventuras e desventuras de acompanhar alguém internado num hospital. No caso, esse alguém é a senhora dele. Tosetto, já disse, não me canso de repetir e vou dizer de novo, é o segundo melhor cronista da atualidade. E às vezes é o primeiro, como no trecho abaixo:

“Uma das companheiras da minha senhora tinha tirado o útero e feito alguma coisa lá por dentro denominada raspagem. Sorrio, contendo os calafrios. Pelo ar e pela voz, parecia jovem, na casa dos seus trinta e poucos. Vocabulário típico da boa escolaridade de hoje em dia, sotaque da zona oeste. Era de esquerda, quis conversar sobre política com a minha senhora, mulher tão de direita que às vezes me assusta, a mim também (no atacado) direitista. Minha senhora a convenceu a não entrar no assunto. No final, cuidaram uma da outra – deram-se água, contaram-se suas histórias, discutiram seus tratamentos e diagnósticos, deram-se dicas e conselhos, ou seja, cuidaram uma dos problemas verdadeiros da outra – e se despediram amigas, com lágrimas e abraços”.

Vitamina

“Ainda há seres humanos por aí”, conclui Tosetto, no que sou obrigado a concordar e, mesmo que não fosse, concordaria voluntariamente. Há seres humanos por aí. Mas, para encontrá-los, você vai ter que sair de casa, interagir e se expor. Vai ter que largar o celular, abandonar o avatar e o nickname, e esquecer por um instante os homens transformados em abstrações e símbolos para prestar atenção a homens de verdade. A maridos, pais, colegas de trabalho, vizinhos e anônimos na fila do pão. E terá de prestar atenção ao outro, em vez de ficar dando ouvidos apenas ao castelo apocalíptico que, usando pedras de medo unidas pela argamassa do noticiário, você construiu na sua cabeça.

Meu amigo Tosetto teve isso que acho que foi uma epifania (foi, né?) no hospital; eu tive num lugar ligeiramente mais agradável: uma pizzaria. Aconteceu há alguns dias. Na mesa de amigos, sentou-se ao meu lado um convidado especial: Henrique Paulo Schmidlin. Mais conhecido pelo simpático apelido de Vitamina. Um senhor de nada desprezíveis 95 anos, e que nos contou proezas de aventureiro e pioneiro enquanto esperava pela pizza petiscando pimentas malaguetas que trouxe de casa, num potinho. E às quais credita sua longevidade e energia.

Hiperfoco

E eu ali ao lado dele, só escutando e tal. Pensando justamente no privilégio que era ouvir aquelas histórias e poder vir aqui compartilhá-las com. Nessa hora o pensamento foi interrompido por uma constatação triste: a de que provavelmente ninguém está interessado na história de um senhor de 95 anos que demarcou trilhas em todos os picos da Serra do Mar e que ainda hoje sobe e desce as montanhas pelas quais, evidentemente, ele é um apaixonado. Ninguém está interessado no outro, a não ser que esse outro, reduzido a uma abstração ou símbolo, aliado ou inimigo, isto é, desnudado de sua porção humana, ao amálgama de contradições que o torna admirável, esteja atrelado a uma ideologia ou a um partido.

Quantas histórias, como as que Vitamina tem a rodo para contar, estão se perdendo por causa desse nosso hiperfoco ridículo? E não é só isso: quantas vidas estão deixando de ser impactadas pelo exemplo e, por isso, têm que se contentar com conceitos abstratos e retórica verborrágica? Ideias, aventuras, causos, loucuras e encrencas que pareciam o fim do mundo, mas que depois de algumas décadas não são nada. Quantas coisas boas nos passam despercebidas enquanto ficamos de tititi esquerda isso, tototó direita aquilo, tatatá isentão aquele outro?

Em quem será que ele votou?

Não estou fazendo, aqui, elogio da alienação, e sim do bom senso e da convivência. Porque ainda há seres humanos aí e, se aprendi direito, isso significa dizer que está cheio de gente precisando ouvir, e outro tanto precisando ser ouvida. Gente querendo ensinar e outro tanto querendo aprender. Há pessoas pedindo desesperadamente ajuda e outras tantas entediadas, desperdiçando todo seu potencial de caridade com a política e seu passatempo diabólico por excelência: a destruição do outro.

Vitamina tem uns olhos inquietos. De criança mesmo. Ele parece sempre disposto a fazer uma traquinagem e talvez comer pimenta malagueta antes da pizza seja uma delas. Assim que terminamos, pois, estou determinado: vou escrever sobre o Vitamina. Porque o mundo está cheio de histórias interessantes soterradas sob toneladas de factoides políticos e isso é errado. O mundo está cheio de histórias que merecem e precisam ser ouvidas; de lições que precisam ser assimiladas sem que se tenha que perguntar: “Mas em quem será que ele votou?”. Afinal, ainda há seres humanos por aí.

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