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O Brasil não pode substituir a China como parceiro dos EUA

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Após quase três anos de tensões comerciais e políticas – intensificadas pelo tarifaço imposto pelo governo Trump às exportações brasileiras, no contexto de sanções aplicadas em virtude das perseguições políticas e violações de direitos humanos praticadas por agentes do Estado Brasileiro e agravadas pela postura abertamente antagônica de Brasília em relação a Washington –, que rebaixaram o relacionamento diplomático bilateral ao seu nível mais baixo em mais de 200 anos de história, grande parte da mídia e alguns atores políticos se apressam em afirmar que as relações entre Brasil e Estados Unidos vivem hoje momento de degelo.

Entretanto, longe de representar um recomeço genuíno, esse processo reflete mais uma mera tentativa de normalização protocolar do que verdadeiro realinhamento estratégico. Para além das aparências, e do ponto de vista substancial, o discurso de “reaproximação” entre Brasil e Estados Unidos é, antes de tudo, uma encenação diplomática. Sob a superfície de sorrisos protocolares e comunicados conjuntos, persiste entre os governos atuais uma relação fria, desconfiada e estruturalmente assimétrica, marcada por interesses inconciliáveis e visões de mundo divergentes. 

Nos últimos anos, o Brasil tem adotado posições que reforçam a percepção, em Washington, de que não é um parceiro confiável no eixo ocidental. O apoio diplomático à Venezuela e à Nicarágua, a aproximação com Rússia, China e Irã em fóruns multilaterais como os BRICS e o G20, a relutância em condenar a invasão da Ucrânia, a busca frenética por sistemas de pagamentos alternativos ao dólar e a oposição sistemática a Israel, dentre muitos outros temas, colocaram Brasília em rota de colisão com a política externa norte-americana.

Mesmo os gestos recentes de conciliação, com reuniões bilaterais e promessas de encontros futuros, não foram suficientes para alterar a percepção de que se está tratando com um interlocutor errático, movido por conveniências momentâneas mais do que por princípios estratégicos compartilhados. Aos olhos de Washington, a suposta “química pessoal” entre os presidentes não passa de uma construção midiática: um artifício para revestir de cordialidade o que, na prática, é uma relação limitada e cética. 

É nesse cenário de desconfiança mútua que ressurgiu, com surpreendente insistência no debate brasileiro, a ideia de que o país poderia “substituir” a China como parceiro comercial preferencial dos Estados Unidos, aproveitando-se das políticas de reshoring e friendshoring promovidas por Washington no contexto das tensões sino-americanas. Essa hipótese, porém, é mais fruto de desejo político do que de realidade econômica.

Essa hipótese, embora atraente em termos retóricos, não resiste a uma análise estrutural. As pautas de exportação do Brasil e da China para os EUA revelam modelos produtivos, escalas e funções completamente distintas nas cadeias globais de valor. Ademais, o comércio brasileiro e o chinês com os EUA não competem no mesmo espaço econômico. O Brasil é fornecedor periférico de insumos e commodities; a China é núcleo manufatureiro integrado à base tecnológica do consumo americano.

Este artigo examina criticamente essa ilusão sob três dimensões complementares:

  • (1) a composição estrutural das pautas de exportação de Brasil e China para os EUA;
  • (2) o grau de sobreposição e complementaridade entre ambos; e
  • (3) a impossibilidade material e geoeconômica de o Brasil ocupar o espaço chinês nas cadeias globais de valor.

O objetivo é demonstrar que a assimetria não é conjuntural, mas estrutural, e que a retórica da substituição revela mais sobre narrativas ilusórias, de cunho populista e eleitoral, do que sobre qualquer mudança real na ordem internacional.

Vamos aos dados. Em 2024, a China exportou para os EUA cerca de US$ 525 bilhões, mais de doze vezes o valor exportado pelo Brasil. Essa cifra não é apenas um dado de volume, mas um retrato da posição chinesa como plataforma global de manufatura e epicentro das cadeias produtivas de alta complexidade, o que, por si só, já mostraria a impossibilidade de o Brasil substituir a China, pois o total global das exportações brasileiras foi de USD 337 bilhões. Ou seja, as exportações globais do Brasil foram cerca de USD 188 bilhões de dólares a menos do que as exportações chinesas apenas para os EUA.

A pauta exportadora chinesa é quase inteiramente industrial, dominada por equipamentos elétricos e eletrônicos, que sozinhos somaram cerca de US$ 126 bilhões, seguidos por máquinas e aparelhos mecânicos, com US$ 92 bi. Outras categorias relevantes incluem móveis e artigos domésticos (US$ 32 bi), brinquedos e produtos de lazer (US$ 27 bi), plásticos e químicos industriais (US$ 24 bi) e vestuário e têxteis (US$ 21 bi).

Mais de 80% das exportações chinesas aos EUA correspondem a bens manufaturados de média ou alta complexidade tecnológica, sejam produtos finais voltados ao consumo doméstico ou componentes industriais indispensáveis à produção americana. A estrutura exportadora profundamente verticalizada é o segredo da centralidade chinesa: cada produto incorpora insumos de múltiplas origens, inclusive brasileiros, e é finalizado na China com altíssimo valor agregado, resultado de um sistema produtivo integrado e de imensa capacidade logística e tecnológica.

A competitividade chinesa, portanto, não se explica pelo custo baixo da mão de obra, como sugerem análises superficiais, mas por escala, coordenação logística e densidade industrial. A China tornou-se insubstituível não por ser barata, mas por ser eficiente e, atualmente, insuperável em sua capacidade de entrega e inovação contínua.

No mesmo período, o Brasil exportou para os Estados Unidos cerca de US$ 41 bilhões, menos de um terço do que a China movimenta apenas com eletrônicos, evidenciando o abismo estrutural que separa as duas economias.

A pauta brasileira é marcada por sua natureza primário-exportadora, sustentada em poucos setores de baixa elasticidade tecnológica. Os principais produtos são combustíveis minerais e petróleo, que respondem por cerca de um quinto das vendas ao mercado americano (US$ 8 bi), seguidos por ferro e aço semiacabados (US$ 5,7 bi), alimentos e bebidas como café, carne e sucos (US$ 5 bi), máquinas e equipamentos de baixa complexidade (US$ 3 bi), aeronaves e partes (US$ 2,7 bi) e celulose e papel (US$ 2 bi).

Cerca de 70% das exportações brasileiras aos EUA são bens primários ou intermediários, cujo processo de formação de preço é definido por mercados internacionais e não por inovação ou diferenciação produtiva. Mesmo o setor mais sofisticado, o aeronáutico, depende de insumos e componentes importados de alto valor agregado, o que dilui seu potencial como vetor autônomo de industrialização.

Essa estrutura de dependência consolida o Brasil como fornecedor substituível, não uma alternativa estratégica à China, por ser incapaz de competir com a densidade produtiva e a escala chinesas. O petróleo brasileiro disputa espaço com dezenas de outros produtores; o café e a carne, embora emblemáticos, são irrelevantes para a macroeconomia norte-americana, embora apresentem impactos para o consumidor final. O contraste é incontornável, pois a escala, o volume e o tipo de produto oferecidos por ambos ao mercado americano são simplesmente incomparáveis.

Da mesma forma, a análise setorial das exportações mostra que Brasil e China não competem diretamente no comércio no mercado norte-americano, com as pautas de exportação revelando uma sobreposição apenas residual. Nos poucos setores em que ambos atuam, a natureza da oferta é completamente distinta. No setor de máquinas e equipamentos, a China exporta US$ 92 bi, geralmente produtos acabados, enquanto o Brasil exporta US$ 3 bi, focados em nichos como máquinas agrícolas e partes aeronáuticas.

Em relação a ferro e aço, o Brasil foca em semiacabados como slabs e ferro-gusa (US$ 6 bi)); a China exporta produtos manufaturados, como chapas, tubos e fios (US$ 15 bi). Quanto a plásticos e produtos químicos, a China é líder global em manufatura (US$ 24 bi); o Brasil exporta volumes menores, mais ligados ao setor de petroquímica básica e embalagens (US$ 2 bi).

A sobreposição real representa menos de 10% da pauta total de ambos. Todavia, mais importante do que o valor é o papel desempenhado: a China fornece bens manufaturados complexos e acabados, componentes eletrônicos, máquinas completas, enquanto o Brasil fornece bens semielaborados, matérias-primas, insumos metálicos e combustíveis. Mesmo no segmento de metais, onde há certa interseção, o país asiático vende produtos manufaturados e de alto valor agregado; o Brasil, apenas intermediários.

O gráfico abaixo não deixa a menor dúvida sobre esses argumentos:

É possível ver claramente que a China domina os setores de eletrônicos, máquinas e bens de consumo (vestuário, brinquedos). O Brasil se destaca, dentro desse espectro reduzido em combustíveis, aço e alimentos. A sobreposição real (máquinas, aço e químicos) é modesta, o que reforça que os dois países têm papéis complementares, e não concorrentes diretos, no comércio com os EUA.

Em termos práticos, a diferença é funcional: com as devidas exceções, como no setor de alimentos, a China abastece o mercado americano, tanto doméstico quanto industrial; o Brasil abastece segmentos específicos da indústria americana. O primeiro fornece tecnologia; o segundo, insumo. O grau de interdependência é, portanto, oposto: os Estados Unidos dependem da China para manter seu consumo e sua produção, mas não dependem do Brasil para absolutamente nada que não possa ser adquirido em outro lugar, ainda que em condições menos vantajosas, como no referido setor de alimentos, mesmo que isso seja importante instrumento de controle inflacionário.

A distância entre os dois modelos é estrutural, e não conjuntural. Em 2024, a China respondeu por cerca de 16% das importações totais dos Estados Unidos, enquanto o Brasil mal alcançou 2%. Mesmo que o Brasil duplicasse suas exportações, ainda representaria menos de 10% do volume comercial sino-americano. A diferença de escala impede qualquer cenário plausível de substituição brasileira da China no comércio com os EUA.

As diferenças não se limitam aos números absolutos. O conteúdo tecnológico médio das exportações chinesas é classificado como médio-alto, enquanto o brasileiro permanece baixo-médio. A China apresenta alta diversificação setorial e densidade industrial, o Brasil, baixa diversificação e dependência de poucos setores intensivos em recursos naturais.

A infraestrutura brasileira é insuficiente, a logística fragmentada e a política industrial, errática. A ausência de cadeias produtivas integradas e de capital humano qualificado inviabiliza qualquer reposicionamento de curto ou médio prazo. Mesmo que houvesse vontade e capacidade política, o que não existe no momento, o país não dispõe das bases materiais para disputar o espaço chinês nas cadeias globais de valor.

Além disso, o tipo de produto que os Estados Unidos demandam da China – eletrônicos, semicondutores, bens de consumo duráveis e componentes industriais de precisão –  simplesmente não é produzido em escala ou qualidade competitiva no Brasil. Falar em substituição é confundir diplomacia com física: não há como deslocar o centro de gravidade produtivo mundial para um país que sequer consolidou sua base industrial.
A infraestrutura, a capacidade produtiva, a integração logística e o capital humano exigidos para substituir a oferta chinesa ainda não existem nem podem ser construídos no curto prazo.

No mesmo sentido, a política de “friendshoring”, promovida por Washington, tem sido interpretada de maneira excessivamente otimista por parte de segmentos da elite política e empresarial brasileira. A narrativa de que os Estados Unidos poderiam substituir fornecedores chineses por brasileiros devido a uma suposta – e inexistente – química entre os presidentes de Brasil e Estados Unidos, mais do que ingênua, é perigosa.

As cadeias globais de produção não se reorganizam por afinidade diplomática, mas por eficiência, previsibilidade e escala. Diante da crescente rivalidade com Pequim, os EUA têm recorrido preferencialmente a México, Vietnã, Índia e Coreia do Sul, países que oferecem não apenas custos competitivos, mas graus de infraestrutura industrial, integração tecnológica, estabilidade institucional e segurança jurídica superiores aos do Brasil.

O problema brasileiro não é apenas de competitividade, mas de densidade produtiva. Falta-lhe infraestrutura integrada, política industrial coordenada e continuidade estratégica. Sem esses elementos, o Brasil permanecerá fora dos fluxos decisórios das cadeias de valor globais, orbitando à margem das negociações e se contentando com papéis de fornecimento primário.

Os dados e as evidências desmontam a tese de que o Brasil possa substituir a China como parceiro comercial dos Estados Unidos. Trata-se de uma comparação estruturalmente equivocada, fundada mais em retórica diplomática e populismo político do que em análise econômica. A participação brasileira no mercado americano é complementar à chinesa, não concorrencial.

China e Brasil desempenham funções opostas no sistema global: o primeiro é centro manufatureiro e tecnológico; o segundo, fornecedor periférico de insumos. Mesmo nos setores de aparente convergência, a diferença de escala e valor agregado é evidente.

A questão que se coloca, portanto, não é se o Brasil pode ocupar o lugar da China, mas por que ainda não construiu uma base produtiva capaz de disputar o mesmo tabuleiro. Enquanto a China exporta conhecimento, o Brasil continua exportando natureza. Sem uma revolução estrutural em sua política industrial, logística e tecnológica, o país seguirá condenado a ser um coadjuvante complacente na economia mundial, vendendo minério, petróleo e promessas ilusórias enquanto outros escrevem as regras do jogo.

Não se pode esquecer, entretanto, que a aplicação de tarifas contra o Brasil não segue uma lógica comercial, mas política, derivando das repetidas e reiteradas violações de direitos humanos e das liberdades civis, além da perseguição política perpetrada contra opositores políticos por agentes do Estado brasileiro. Qualquer que seja a linha que o Estado americano decida seguir, Trump deverá considerar os princípios políticos irrenunciáveis de sua nação em primeiro lugar.

Marcos Degaut é doutor em Segurança Internacional, ex-secretário especial adjunto de Assuntos Estratégicos da Presidência da República e ex-secretário de Produtos de Defesa do Ministério da Defesa.

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