Assim que acordei, vi as redes sociais tomadas por manifestações de revolta e indignação contra o apresentador Luciano Huck. O que não é exatamente uma novidade. Várias postagens o xingavam de defensor de bandido, mamador da Rouanet e hipócrita, entre outros termos impublicáveis.
“Mas o que será que o Huck falou de tão grave?”, me perguntei, hesitando em assistir ao vídeo do discurso que o apresentador fez no finalzinho de seu programa dominical na Globo. Será que ouço, será que não ouço? Ouvi. E, depois de 3 minutos e meio de platitudes e obviedades bem-intencionadas, a conclusão a que chego é simples: Luciano Huck não falou nada de errado.
Vou de táxi
Você duvida? Tudo bem. É compreensível. Afinal, o histórico de manifestações políticas de Luciano Huck não é dos melhores. Outro dia mesmo ele não estava dando os parabéns ao Lula? Já a esposa dele, aquela que vai de táxi, andou se juntando à fileira das feministas que pedem uma ministra negra no STF. E por aí vai. O casal está sempre envolvido nas campanhas progressistas e não escondem o seu nojo por tudo o que seja “de direita”.
Mas, neste caso específico, o do discurso no final do programa, Huck foi surpreendentemente sensato. Acontece, gente. E é importante que, quando aconteça, a gente esteja disposto a reconhecer e aplaudir. A incentivar a sensatez. Do contrário, a pessoa se fecha ao contraditório e à realidade. A pessoa se afasta ainda mais. E o objetivo não é esse, certo? O objetivo é atrair as pessoas para uma pauta que deveria ser de consenso: a segurança pública. Mas chega de lorota e vamos à análise do discurso.
“Mães que enterraram seus filhos”
Huck começa o discurso dizendo que é paulista, mas que vive no Rio de Janeiro há 25 anos. “Foi aqui que a gente escolheu para criar nossos filhos. E é uma tristeza ver o mesmo modelo de segurança pública se repetindo há décadas, sem nenhum resultado”. Muita gente viu nessa fala uma crítica demolidora, hipócrita e vergonhosa à megaoperação contra o Comando Vermelho. Aquela dos 120 mortos. Eu só vi uma opinião – e não das piores. Afinal, o estado calamitoso da segurança pública no Rio é mesmo resultado de décadas de omissão e de enfrentamento ineficiente.
Ou será que estou enganado? Talvez esteja. Sem problemas. Não é vergonha nenhuma. Aí Huck fez menção aos 120 mortos e o pessoal foi à loucura. “Cento e vinte mortos numa operação policial no Complexo do Alemão e da Penha. Por trás desse número tem 120 mães que enterraram seus filhos”, diz ele. Neste ponto, os mais revoltados ressaltam que Huck não mencionou as milhares de mães das vítimas desses criminosos. Mas desconfio que não faria diferença nenhuma. Porque o problema não é o que se fala, e sim quem fala. Pior: o problema é a diferença entre o que a gente ouve e o que a gente quer ouvir.
“Com força total”
Volto a isso no final do texto. Antes, porém, quero me ater ao discurso. Que continua: “E você acha que foi isso que elas [as mães dos bandidos mortos] sonhavam quando essas crianças eram pequenas e corriam ali pelas vielas do Alemão ou da Penha? Claro que não”. Aqui, quem escreveu o discurso foi muito feliz, porque despiu a realidade tanto da teoria do “bandido bom é bandido morto” quanto da que diz que “o bandido é vítima da sociedade”. E sei que você está com raiva, muita raiva. Mas releia e tresleia, se precisar. Perceba que há vidas no meio dessa discussão toda. Há sonhos desfeitos e esperanças destruídas. Há dor e há morte, muito antes de os corpos serem marqueteiramente enfileirados na rua.
Eis então que Huck decide ser enfático. (Mas, aparentemente, não o suficiente). “É preciso combater o narcotráfico com força total”, diz, sem dar margem a interpretações. “É preciso coordenar ações entre todos os níveis de poder, municipal, estadual e federal. É preciso sufocar a parte financeira das organizações criminosas, das milícias, do tráfico e por aí vai”. O nível do texto é o de uma redação do ENEM e Huck parece se acreditar capaz de resolver um problema complexo como esse com meia dúzia de “é-precisos”. Mas por acaso ele está falando algo de errado? Está defendendo bandido? Não.
É preciso…
Pelo contrário! Luciano Huck, talvez num esforço para conquistar um público que ele sabe que lhe é hostil, enfileira mais dois “é-precisos” que, na boca de um bolsonarista, seriam celebrados: “É preciso valorizar a polícia e o policial, mas é preciso mais do que isso. É preciso gerar oportunidade, dar perspectiva para quem nasce nesses recortes da cidade do Rio de Janeiro, oferecer boas referências, abrir caminhos, mostrar que existem outros futuros possíveis, porque quando o Estado se ausenta, outro poder ocupa esse lugar”.
Sim, é uma obviedade. Uma platitude. Mas como discordar do que diz o marido da Angélica? Ou você realmente acha que matar 120 bandidos por dia resolve? Aqui, porém, Huck se depara com um problema do qual ele faz parte: a cultura da ostentação, que reduz a vida à sua porção materialista e que, assim, corrompe os sonhos dos jovens, tornando indigna qualquer ideia que se faça da “modéstia”. E sim, existem “outros futuros possíveis” (e dignos) além da riqueza e da miséria.
Refém da violência
Continuando, Huck diz o óbvio, que “a maioria da população carioca vive nesses cantos [sic] da cidade e é também refém dessa violência. Não compactuam, não pertencem”. Taí uma verdade incômoda. Para a esquerda, que exalta a rebeldia vulgar e violenta da narcocultura. Se Regina Casé e o próprio Luciano Huck não tivessem tornado a estética do banditismo aceitável, talvez fosse mais fácil para as pessoas entenderem que, sim, os favelados são, na maioria, trabalhadores reféns da violência que lhes toma não só a liberdade, como também os filhos. A vida dos filhos.
Então rola um blá, blá, blá. Armas, Medellín, Nova York. Argumentos que, apesar de rasos, se comunicam com o público do programa e mostram que resolver o problema da violência urbana não é uma quimera. Huck só esquece de dizer que é impossível enfrentar a criminalidade sem algum tipo de força e sem desagradar um ou outro grupo de pressão progressista. Mas tudo bem. Afinal, trata-se de um discurso de um artista (?) popular, não de uma tese de doutorado.
“Acredito na polícia”
Por fim, Luciano Huck acena aos apoiadores da megaoperação, até porque ele sabe que eles são a maioria do seu público. “Então encerro dizendo, olho no olho, para as famílias dos policiais mortos. Eu nunca escondi a minha posição pública de apoio à boa polícia (…). Acredito na polícia pelos seus melhores exemplos e não por suas exceções. Os quatro policiais mortos em combate saíram de casa para trabalhar e não voltaram. Essa também é uma parte devastadora dessa história”.
Só por esse finalzinho, não entendo por que não tem ninguém aplaudindo o discurso. E não, não estou sendo irônico. Leitor, imagine como deve ter sido difícil para o Luciano Huck ter dito essas palavras – pelas quais, aliás, acredito que ele vá ser cobrado pela beautiful people no futuro próximo. São palavras corretas, mesmo que não sejam totalmente sinceras, ditas em horário nobre e em rede nacional, e que têm o poder de transformar, nem que seja um pouquinho, a forma como muita gente vê a polícia. Clap, clap, clap para ele.
Ruído
Mas é aquela coisa que não me canso de apontar: o debate público no Brasil é puro ruído, busca por validação e necessidade de aceitação. As pessoas ouvem não o que foi dito, e sim o que elas acham que foi dito. E, a depender de quem diz, ouvem o contrário do que foi de fato dito. Uma confusão danada. Além disso, ninguém está disposto a reconhecer o próprio erro, dar a mão à palmatória, pedir desculpas e mudar de ideia. Ninguém presta atenção quando um adversário parece hastear a bandeira branca.
Para piorar, aqueles que têm voz e poderiam influenciar positivamente o debate público se omitem. Porque estão mais preocupados com o like reativo e em não ser chamado de “limpinho” pelos bolsonaristas mais aguerridos. Eles desdenham da verdade se ela não lhes interessa nem lhes é politicamente conveniente. O que é uma forma de corrupção na qual a direita, infelizmente, se lambuza. E muitas vezes nem percebe.

