Fundador da Bridgewater Associates — uma das maiores gestoras de investimentos do mundo —, Ray Dalio também é conhecido por traduzir crises econômicas em padrões históricos compreensíveis. Em seu novo livro, “Como os Países Quebram” (editora Intrínseca), ele examina o que chama de “Grande Ciclo do Endividamento”: um processo que explica como as potências crescem, atingem o auge e entram em colapso quando as dívidas e os desequilíbrios sociais se tornam insustentáveis.
Dalio mostra como esses estágios financeiros se entrelaçam com forças políticas, tecnológicas e geopolíticas, formando um “Grande Ciclo Geral” — o movimento que, segundo o autor, redefine a ordem mundial e desloca o eixo do poder entre nações.
No trecho a seguir, ele examina a trajetória recente da China sob Xi Jinping, descrevendo como o país passou da abertura econômica e das reformas pró-mercado para um regime de recentralização política, repressão interna e confronto com os EUA. É uma análise que ajuda a entender por que o sonho de modernização deu lugar ao controle total — e o que isso revela sobre o novo equilíbrio global.
O presidente Xi Jinping e a nova equipe de líderes chegaram ao poder em 2012. Seus principais objetivos eram realizar uma reforma econômica e eliminar a corrupção.
Devido à minha experiência e aos meus relacionamentos confiáveis e de longa data, pude participar dessas discussões no terceiro plenário (a grande reunião de planejamento do novo governo após as principais nomeações).
Percebi um ambiente muito colaborativo e aberto à troca de ideias, em que debatemos sobre questões cruciais. Considero que essas discussões sobre como eliminar a corrupção e fazer reformas foram sinceras e excelentes.
Havia um grande desejo e entusiasmo dos novos líderes para melhorar a China, e fiquei emocionado em poder ajudar. Reformar a economia significava modernizá-la para que fosse mais orientada pelo mercado.
Expurgo do maior rival
Por exemplo, naquela época, cinco grandes bancos emprestavam dinheiro para empresas estatais, que recebiam garantias implícitas do governo, que tinha condições de oferecer tais garantias, e havia poucos empréstimos para pequenas e médias empresas. A liderança queria mudar isso, então procurou desenvolver mercados de capitais que melhorassem o acesso a empréstimos, financiamentos e investimentos.
Estive intimamente envolvido nisso, então pude ver como os responsáveis pensavam e o que fizeram.
Descobri que, durante a maior parte do primeiro mandato de cinco anos de Xi, houve: a) abertura ao pensamento externo; b) um forte desejo de estabelecer ainda mais reformas na economia, tornando-a mais orientada pelo mercado e tomando medidas para construir e reformar os mercados de capitais; e c) forte tomada de ação para eliminar a corrupção.
Os líderes seniores escolhidos foram aqueles que estavam inclinados a essas mudanças. É lógico que o método para fazer essas coisas foi debatido, e algumas pessoas se beneficiaram das mudanças, enquanto outras foram prejudicadas, o que criou divisões.
Após sua chegada ao poder, Xi expurgou de imediato um forte rival (Bo Xilai), lançando-se intensamente na condução de grandes mudanças para extinguir a corrupção e reformar a economia. No fim do primeiro mandato de Xi, houve um movimento para consolidar o poder político em torno dele com a mudança para uma “liderança central”.
Política brutal
Se você acha que a política nos Estados Unidos é brutal, deveria ver como as coisas funcionam na China. Isso ficou ainda mais explícito nas mudanças de liderança que acompanharam a transição do primeiro para o segundo mandato de cinco anos de Xi.
Até aquele momento, houve realizações notáveis (por muitas medidas, as maiores da história humana). Desde que comecei a frequentar o país, em 1984, a renda per capita da China aumentou 20 vezes, a expectativa média de vida subiu 12 anos e a taxa de pobreza caiu de 81% para menos de 1%.
Em 2014, a Rússia anexou a Península da Crimeia da Ucrânia — o que é uma outra história, a ser discutida em outro momento. Basta dizer que, na época, embora russos e chineses tivessem aversão e desconfiança mútuas, foram unidos pelo inimigo comum e viram que poderiam ter uma relação econômica simbiótica.
Em 2015, Xi lançou seu plano 2025, que descrevia a necessidade de a China ascender e dominar certas indústrias. Os chineses encaravam isso como uma aspiração, e os Estados Unidos, como uma ameaça.
A China não tinha mais como “esconder seu poder”. Além disso, outros países se sentiram intimidados por seu grande crescimento no comércio mundial, pelo aumento de sua riqueza, por sua maior imposição geopolítica e por seu “roubo” de propriedade intelectual.
Nessa época, os norte-americanos começaram a culpar a China por seus problemas econômicos e a encarar o país como uma ameaça maior. Devido às perdas de empregos da classe média norte-americana, atribuídas às importações chinesas e à maior assertividade internacional da China, o pêndulo do sentimento em relação ao país oscilou de positivo para negativo.
Conflito entre potências
Quando o presidente Trump chegou ao poder, em 2017, e o presidente Xi iniciou seu segundo mandato, em 2018, o conflito entre as potências se acirrou, e negociações comerciais evoluíram para provas de poder e uma espécie de guerra fria. Naquela época, ficou evidente para os líderes chineses que estava começando um clássico conflito entre grandes potências.
Um líder do alto escalão chinês me assegurou que a liderança chinesa não tinha por objetivo mudar a ordem mundial multilateral no que diz respeito a organizações multinacionais, como a ONU, a Organização Mundial do Comércio, a Organização Mundial da Saúde, o Banco Mundial e o FMI.
Esse líder argumentou que as mudanças na ordem mundial e as ameaças ao multilateralismo eram, na verdade, resultado da mudança da administração Trump para uma abordagem unilateral, cujo lema era America First [“Estados Unidos em primeiro lugar”], colocando os interesses norte-americanos à frente da comunidade global e elencando a contenção da China como principal prioridade.
Mistura perigosa
A essa altura, a Rússia e a China tinham os Estados Unidos cada vez mais como a ameaça comum, o que levou esses países a um alinhamento ainda maior. Então, em 2019-20, a covid-19 se disseminou.
Ao mesmo tempo, a bolha de dívida e as disparidades de riqueza da China cresceram, e as relações com os Estados Unidos pioraram, de forma que houve uma convergência clássica de grandes forças de dívida/finanças, ordem interna, ordem externa e fenômenos naturais, formando uma mistura perigosa.
Além disso, Taiwan era (e ainda é) uma questão de contenda, já que a China esperava o cumprimento da promessa de “Uma China” unificada. Em vez disso, porém, parecia haver um movimento contrário — a uma maior independência de Taiwan.
Isso se intensificou porque a maioria dos chips de computador avançados do mundo era (e ainda é) produzida em Taiwan, o que garante ao país o controle da tecnologia mais poderosa do mundo.
Ver todos esses conflitos domésticos e internacionais evoluírem, aliados à compreensão histórica, levou Xi a transmitir a ideia de que uma grande tempestade de 100 anos se aproxima.
Irritação interna
Em 2018, Xi começou seu segundo mandato de cinco anos como chefe do núcleo com mais poder consolidado e tendo estabelecido alianças próximas com quatro dos sete membros do Comitê Permanente do Politburo. Em 2020, grande parte da China se fechou devido à pandemia de covid-19, o que gerou certa irritação interna sobre como a nação estava sendo administrada.
Então, em 2021, depois de pouco mais da metade do segundo mandato de Xi, a bolha da dívida interna da China estourou.
Descontente com a postura de líderes empresariais abastados — que buscavam exercer de modo arrogante sua influência na forma como a China estava sendo governada —, Xi enfatizou a importância da “prosperidade comum” e tomou algumas medidas aparentemente arbitrárias e não consistentes com o tipo de estado de direito e proteções de propriedade tradicionais que os investidores consideravam importantes.
O governo também derrubou alguns líderes empresariais bilionários e seus negócios, com a intenção de colocá-los em seu devido lugar.
No início do terceiro mandato de Xi, em outubro de 2022, a liderança da China foi de globalista com mentalidade reformista para comunista leal e patriota com controles mais rigorosos sobre a possível oposição, mudando de altamente orientada para o livre mercado, com crescimento dos mercados de capitais, para o estilo mais comunista de Mao, conforme se intensificavam o conflito interno e o conflito internacional entre grandes potências.
Grandes dívidas
A China hoje é um país que vive uma grande crise de dívida ao mesmo tempo que se volta a políticas econômicas comunistas mais tradicionais, enquanto testemunhamos um aumento do conflito interno, que está sendo eliminado por políticas autocráticas mais estritas e dirigidas pelo líder/presidente do partido; um aumento do conflito internacional com os EUA e grandes mudanças no mundo, em cuja moldagem a China desempenha um papel cada vez mais importante; a mudança climática, que tende a gerar grandes efeitos no país asiático; uma guerra tecnológica, que nem a China, nem os EUA podem se dar ao luxo de perder.
Ao mesmo tempo, o país tem feito grandes avanços em muitas áreas, sobretudo na manufatura habilitada por tecnologia, que vende a preços muito baixos, tendo os países emergentes — que representam 85% da população mundial — como seu novo grande mercado-alvo.
Já nos Estados Unidos, no momento em que escrevo isto, em março de 2025, o segundo governo Trump assumiu há pouco o poder e tem que lidar com a questão de sua grande dívida, enquanto o conflito interno leva o país a empregar políticas mais rígidas e semiautocráticas para subjugar a oposição e suas políticas de esquerda; há um aumento do conflito internacional com a China e os países a ela alinhados, enquanto o país passa de líder global a uma postura nacionalista com o lema America First na ordem mundial em transformação; alterações climáticas, que provavelmente terão grandes impactos; uma guerra tecnológica que nem eles, nem a China podem se arriscar a perder.
Ataques violentos
Os ataques de um contra o outro, por baixo dos panos, têm sido violentos. Portanto, estamos diante do embate dessas duas grandes potências, cada uma respaldada por seus aliados e suas ideologias, um cenário que remete ao contexto observado na década de 1930, quando o mundo atravessava uma fase semelhante do Grande Ciclo.
Ao mesmo tempo, há uma reaproximação dos Estados Unidos em relação à China, já que o presidente Trump descreveu o presidente Xi como um “grande líder” que “controla 1,4 bilhão de pessoas com punho de ferro”.
O que acontecerá nos Estados Unidos, na China e no mundo todo será outro teste das forças relativas dessas duas grandes potências e seus sistemas e abordagens muito diferentes. Ambas as nações estão engajadas em uma guerra que, para a sorte do mundo, ainda não se transformou em confronto militar.